sexta-feira, 18 de junho de 2010

carta desesperada

Anita
a poesia perdeu para a fome.

(meus olhos fixos divididos
entre
o preço do açúcar
e
a manhã convulsiva de teus cachos)

Anita, todos os dias eu acordo entretido.
Todos os dias eu leio a boca dos burgueses da cidade de São Paulo.
Quatroze de junho do ano de dois mil e dez, Anita,
e eu não consigo pensar em nada que não o preço do açúcar.

O preço do açúcar, Anita!
melhor seria o teu gosto creme,
tuas omoplatas em fúria,
tua lingua vermelha destravada!

Pensar ao menos na tua falta.
no teu corpo deitado manso chiando um blues.

mas as bocas me resvalam:
a saudade não se mede em reais, rublos ou dólares:
não é tempo de saudade, mas de pensar no preço do açúcar.

O preço do açúcar, Anita, mas não, nem isto:
qualquer resto que sacie a minha carne.
não engulo ônibus, prédios ou parques vazios.

(Não esquecer: os supermercados são desertos de excesso.)

A capital do país urra:
É terminantemente proibido comer!
Qualquer cidadão apanhado em estado de greve será fuzilado de fome!

Dinheiro.
que indelicadeza tratar de dinheiro numa carta!
mas acontece, Anita,
que sem carne não há saudade e nem vida.
e acontece mais, Anita,

A poesia perdeu para a fome.

ps: (antes do beijo e da despedida, espera, Anita):
intuo que da pedra fiz um verso.

Um comentário:

  1. Meu querido, adoro a forma como você escreve! Me toca de uma maneira estranha e se difere muito do que escrevo. É muito bom te ler...

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