quinta-feira, 29 de outubro de 2009

É preciso ser Cassandra, berrar o berro que te põe do avesso. É preciso que os homens ouçam: o homem, único animal que insiste em fazer do contato um breve suspiro e da vida a celebração do morrido. Mas os homens não ouvem, e silenciam a Tróia que lhes arde nas entranhas, a mesma Tróia que queima o suplício lilás de cem mil séculos vividos.
Quando, afinal, o cavalo que lhe invade as vísceras será expulso galopante, e de urro em urro, exlodirá a carcaça de madeira que toda cidade comporta?
É preciso, absolutamente, ser Cassandra: seduzir Apolo e não cumprí-lo, ainda que o convencimento, dom dos empresários, passe a mendigar nas ruas. Ainda que teu rosto afunde no grito de vespa que lançam os descrentes incendiados que saem da Igreja. Ainda que a corrente dos acadêmicos, manequins embutidos de um gravador, siga a perpetuar os cemitérios que plantam, e te tentem com o riso dos desesperados (que se esconde nos cafés e no outono de cachecóis esvoaçantes).
Importa ser Cassandra desvairada, poeta que anuncia o rompimento com a mandíbula empoeirada das bocas dos velhos e de suas cadeiras. Anúncio do fogo que há de queimar os esqueletos dos homens, se não se atentarem para o que já os devora.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A cidade morre lentamente, costela a costela de metal. Os olhos amarelos de cansaço e medo. A miséria do homem que faz os jornais.
Cada pequeno apartamento segura fundo o desejo do casal que se toca muito breve. O pulmão das ruas, o descompasso entre o sorriso e a palavra.
Como posso, nesta noite de faróis radiantes, seguir em paz?
O sono e a sala acesa, mais os restos de cada parte que imagino para a vida.
Ela já se foi. Outras entrarão pela mesma porta, dirão boa noite e tocarão com os lábios semi-abertos a mesma fenda em que escondo a cidade que abomino. E a cadência das ruas que me habitam, dos diversos casais que se molham nas fontes, das fotografias que me expulsam para frente, sem que eu nem possa ter tentado me agarrar a algo, como se agarra a um lençol.
Não se deve, por isso, arrumar a cama.
A cada corpo, a cada copo de uísque e suspiro que violenta teus ouvidos, desnuda um pouco teu deserto. Amontoa a carne que te enfileira em cima do teu repouso, porque não há repouso.
Queima, cada vez mais, a pálpebra que monta tua vida como a um cinema de paredes vermelhas. Não arruma tua casa como quem silencia um noivado casto com o futuro. Não há sono que te traga alforria, você escravo.
Não há veste que te cubra o pudor do beijo.

outubro/09

domingo, 11 de outubro de 2009



Wassily Kandinsky, Several Circles (Einige Kreise) 1926

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Anatomia

O estreito cavalar do céu
irrompe de minha boca em brasa
(artéria ardendo um enxame de corpos nus
e roupas rasgadas:
memória do centro de minha nuca.)

: Guardo meus sonhos em coleiras.
reduto do medo que devora o medo
e os prédios e o trânsito de meus músculos cansados.

Ponho uma gravata castanha que enfileira cada pensamento
e subo no altar de dentes vermelhos da
eternidade da vida presente para
a glória esperada da vida futura.

Serei casto com meus amigos como a vértebra que
diz sim (de olhos fechados) à respiração.
Não estuprarei os meus amores com meus olhos.
Não dançarei no espaço alheio,
não comerei a flor do vizinho.

Cadente, calarei e pedirei o prato do dia.

E jamais a ardência de meu sexo
condenará a noite vazia:
irei mascará-la com todo o esforço de um bater de asas e contemplá-la
carnaval, samba e folia.

Cerrarei meus olhos e serei pai.
e a meia-noite de minha vida perseverá
nas entranhas de minha cria,
que será pai e parirá um milhão de
versos vencidos.

(É preciso calar.
É preciso renascer a família despedaçada nos retratos
É preciso se preocupar com a ordem do dia
e reproduzir, confiante, as palavras gráficas dos telejornais.

É preciso, antes de tudo, a calma dos avós
e a prudência de uma confeitaria.
É preciso assassinar o grito que jorra das fontes das praças.
É preciso não ser poeta,
não morrer jamais,
e denunciar com a ladainha dos velhos
os ossos moídos despregados da carne
da boa e incomparável alegria de ser
parte. )

Mas a parte, a parte de ser parte, o pedaço de ser parte,
não comportará jamais o ser que me vêm em mal-estar
quando construo e edifico este corpo puro.

Não posso ser puro. Mastigo os escritórios,
a história, as gravatas e os olhos de meu
filho.

Cuspo na boca (minha) quando me penso anjo.
Estupro meus amores com meus olhos
Condeno o dia e a noite por não serem demasiado belos
Conjugo o verbo feio, ridículo, de sapatos grandes.
Sou dois cachorros que devoram o intestino da vida presente.
Sou a fome das janelas e dos carros.

Sou o desejo das noites azuis:
impuras pelo desejar dos loucos,
famintas pelo desejar dos dias.

(uma casa de quartos fechados
explode enquanto expulso do mundo
a terra, a família, e o gosto terrível
que infesta meus dentes. )






















Thyago Marão Villela; 9/10/09

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Desassossego

A tua cara entranhada de olhos castanhos, fuligem e barro
Dilacera em mim uma revoada de pássaros cinzentos
de sons horrorosos,
Carniças castanhas dos tempos passados
e o remoto jogo de peças reviradas
em que se retorce tua alma.

O amor, amigo, contorce-se no balanço
fatídico de Ícaro -
que o desejo sobre-humano de tornar-se céu
repete-se a arrancar-lhe as asas.



(mas que belas asas!).

domingo, 27 de setembro de 2009

A tua pele, Alice...


. Klimt, Gustav. Tree of Life.

A tua pele, Alice,
é qualquer coisa entre o gosto que ferve de meus olhos
e os corpos que chovem lá fora.

é como o chacoalhar deste carro,
que trepida entre a vontade de velocidade
e o desejo puro da morte.



é como o refluxo azul da vida perdida.

tua pele, Alice, encerra mais que o mistério de cem mil ondas.

Tua pele grita a distância do mundo desejado, Alice,
um mundo em que tua pele se despiria de qualquer altar,
em que nenhum poema patético como este
se ergueria sob a ausência de tua pele.

um mundo aonde teus olhos, e até a mais ínfima mecha de cabelo
trariam em si a poesia roubada por tua pele.

Porque tu és, Alice, não esta parte-alvo de meu poema;
mas a respiração de cada momento íntimo
que silencia tua eterna santificação,
teu eterno pertencimento vivo.

O mundo futuro, Alice, aonde pele-carne-sangue
não me sejam mais que a pele morta dos poemas passados,
do endeusamento putrefato de uma vida tão doída...


A tua pele, Alice, rouba a poesia que
pertence aos homens.